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A sandália Invisível

  • Foto do escritor: Adenilson Barcelos de Miranda
    Adenilson Barcelos de Miranda
  • 23 de ago. de 2024
  • 3 min de leitura

Fernanda foi na vida adulta diagnosticada com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, o que todos reconhecem na sigla TDH. O diagnóstico na vida adulta conectou Fernanda a memórias da infância, em uma pequena cidade mineira. Os comentários que ouvia sobre sua agitação naquela época agora faziam sentido.


Aquele cardume de sentimentos e a necessidade constante de movimento, que a levavam a explorar cada canto da cidade em caminhadas despretensiosas e visitas inesperadas, moldaram sua personalidade única. Hoje, Fernanda reconhece que aquela energia, que antes a diferenciava, era uma característica intrínseca da sua condição, que a acompanha até os dias de hoje, mas também a presenteava com uma sensibilidade aguçada e uma intensa curiosidade pela vida.


Na quinta-feira, o dia se arrastava com o peso dos compromissos e das expectativas. No trabalho, onde a utilidade e a produtividade se consolidam como uma espécie de régua para medir o valor de cada um, Fernanda se via sempre em luta para manter-se focada, mas ao final do expediente, sentia-se aliviada, como se o peso do mundo se desprendesse de seus ombros.


Ao deixar o prédio onde trabalhava, cumprimentou recepcionistas e vigilantes com um sorriso suspenso em alegrias e seguiu para o estacionamento. Sentada em seu carro, olhando a paisagem além do para-brisas, retirou as sandálias, sentindo a conexão dos pés descalços com o tapete do carro. A estrada de volta para casa era sua jornada de transição, onde a realidade começava a desvanecer e o espiritual tomava conta.


Ao chegar em casa, percebeu, com uma estranha serenidade, que estava descalça de um pé. Uma sandália havia desaparecido, e, por um momento, sentiu uma ligação com algo maior. Não se tratava de um simples esquecimento; havia um propósito oculto naquilo, pensou. Procurou pela sandália, mas sem a pressa comum dos dias agitados. Sabia que certas coisas escapam ao nosso controle por razões que transcendem a lógica e razão dos pensamentos. E, de alguma forma, aquela sandália ausente era um sinal de que estava em comunhão com o invisível.


Sua condição, longe de ser um defeito, era um portal para outra dimensão de existência, uma sensibilidade que lhe permitia tocar o intangível. A sociedade ao seu redor exigia eficiência, mas ali, naquele instante divino, a lógica se desfez. Fernanda não era uma peça de uma máquina produtiva; era uma mulher capaz de sentir o etéreo, de ver além do que era visível. A sandália perdida não era um erro, mas uma revelação, uma pista de que sua alma estava em sintonia com uma realidade espiritual que poucos podiam alcançar.


Descalça, sentiu o chão frio sob os pés e sorriu. Se viver era necessário, sentir-se viva era essencial. O universo, ao tomar-lhe uma sandália, oferecia-lhe algo mais valioso: a compreensão de sua própria singularidade, não pelo que produzia, mas pelo que era capaz de perceber.


Vocação de São Mateus. Caravaggio, concluída em 1599-1600.

"A Vocação de São Mateus", um quadro de Caravaggio, representa um momento de transição espiritual, onde o mundano e o divino se encontram. Assim como São Mateus, surpreendido em sua rotina, Fernanda experimenta um momento de revelação em meio à sua jornada cotidiana. O uso dramático da luz e da sombra por Caravaggio reflete a tensão entre o visível e o invisível, o real e o espiritual, elementos também presentes na experiência vivenciada por Fernanda com o desaparecimento da sandália.


Na pintura, enquanto de um lado vemos os personagens calçados e bem vestidos reunidos em torno de uma mesa, inclusive São Mateus, do outro lado destaca-se a simplicidade de um homem de pé, Jesus, com os pés descalços voltados para o lado oposto da mesa. Ele nos orienta a um novo caminho, mas nos questiona: onde deixamos o nosso coração? Nas coisas, nas pessoas, no trabalho, nos jogos?


Assim como a luz divina que escolhe São Mateus em meio às trevas, a ausência da sandália simboliza uma iluminação, uma conexão especial com o mundo espiritual que transcende a lógica e a realidade imediata, que Fernanda é capaz de sentir, porque se viver é necessário, ela sabe que sentir-se viva é essencial.

 

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