top of page
Adenilson Barcelos de Miranda

Corte e costura: Gustavo

Gustavo, designer por formação e amante das linhas invisíveis que traçava na tela, viu sua rotina mudar de forma abrupta durante a pandemia. O tempo, antes controlado por prazos e pixels, transformou-se em um vazio prolongado nos intestinos de uma voraz quarentena . Ele, que sempre lidou com projetos virtuais, decidiu que era hora de dar um novo rumo ao tempo e ao sonho que há muito repousava em sob as unhas: costurar.


A costura, porém, era um caminho distante de sua prática. Não queria ser alfaiate, aquele que molda ternos sob medida com a precisão de um arquiteto, nem se via como costureiro, criador de peças amplas e versáteis. Gustavo queria apenas fazer a própria camisa. Mas o que significava isso? Na superfície, era um desejo simples: vestir algo que fosse feito por suas próprias mãos. No entanto, por trás do tecido e das linhas, havia algo mais profundo. O ato de costurar, durante um período em que o ar carregava a ameaça de morte, era sua forma de criar vida, de moldar algo tangível em um tempo em que a leveza de existir se tornava insustentável.


Como designer, Gustavo estava acostumado a trabalhar com tecidos imaginários, tramas que nunca se tocavam de verdade, apenas existiam em códigos e em telas de computador. Na costura, porém, o cenário era outro. O toque no tecido, o furo da agulha, o rasgar das tesouras: tudo era físico, real, presente. Cada ponto que costurava não era apenas uma linha unindo partes, mas um respiro no caos. Era preciso tomar outro caminho quando o ar, esse mesmo que nos dá vida, se tornava uma ameaça.


O simples ato de moldar uma camisa trazia um tipo de reconexão que ele não encontrava mais nas suas criações digitais. O tecido, que começava vazio e desforme, aos poucos tomava o contorno de algo que podia vestir. A cada costura, Gustavo sentia que não estava apenas costurando uma peça de roupa, mas também recuperando a parte de si que o isolamento tentava desfiar. Quando a camisa ficou pronta, ele a segurou com mãos trêmulas. Não era perfeita. Algumas costuras estavam desalinhadas, a manga parecia um pouco longa demais, e o corte não tinha o rigor técnico que um alfaiate ou costureiro profissional daria. Mas Gustavo, ao vestir a camisa, sentiu algo que nenhum designer poderia criar: a sensação de estar abrigado, de ter dado forma ao vazio, de ter se costurado de volta ao mundo.

E naquele instante, sua criação, crua e imperfeita, lembrou-lhe de um quadro de Basquiat. Assim como as obras de Jean-Michel, sua camisa carregava a marca de uma luta interna. O tecido, assim como as cores e traços de Basquiat, era um grito entre o caos e a busca por algo que fizesse sentido. As costuras desiguais, os pontos imperfeitos, tudo era uma expressão visceral de seu tempo, de sua dor e, ao mesmo tempo, de sua resistência. Vestir aquela camisa era como se vestir de uma obra de Basquiat: não era sobre perfeição, mas sobre dar corpo à vida e à esperança que coexistiam em cada linha. No final, assim como as obras de Basquiat, o que importava não era a simetria, mas o que ela revelava: a beleza do imperfeito, a coragem de transformar o caos em arte.

4 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page