
Hoje, Ana Carolina veio ao departamento. O espaço, agora mais amplo e iluminado, parecia abrir os braços para recebê-la. Com o sorriso caloroso de sempre, ela me cumprimentou e perguntou sobre o quadro que lhe dei. Seu olhar curioso era um convite para revisitar memórias.
Ao ouvir sua pergunta, minha mente mergulhou nas lembranças. Coloquei as mãos nesses fragmentos do passado e comecei a narrar a história por trás da pintura. Contei sobre um tempo em que compartilhei minha vida com uma mulher. A dor de uma gravidez interrompida nos assolou como um tsunami. Junto com ela, veio uma depressão que nos envolveu como uma onda implacável, arrastando nosso relacionamento para os grãos de areia do que um dia foram pegadas na praia. Foi nesse cenário de perdas que me voltei aos quadros, buscando na arte uma forma de processar as reflexões que surgiam em mim.
Lembrei-me da criação divina. Adão, Eva, o fruto proibido. A recomendação era clara: não comer. Mas diante a serpente, Eva ofereceu o fruto a Adão. Ele, a quem cabia a responsabilidade de dizer "não", não hesitou. Contudo, o peso da expulsão do paraíso recaiu sobre a mulher, que passou a sangrar sem estar ferida. Enquanto pensava nisso, fui levado ao momento divino da concepção de Jesus, gerado no ventre de Maria pelo Espírito Santo, sem a intervenção da carne do homem. Aquilo me intrigou: talvez a carne do homem fosse impura para a concepção de um Cristo.
Foi a partir dessa ideia que me detive em Maria. As representações das madonas sempre me fascinaram: a cabeça levemente inclinada, o menino Jesus nos braços, a pureza de um instante eterno. Mas, em minha mente, a figura feminina começou a se transformar. Imaginei as Marias sem o menino nos braços, como se uma gravidez interrompida representasse um limbo entre ser mãe e não ser. Passei, então, a representá-las despidas dos panos que as cobriam, revelando o corpo nu como símbolo de pureza e verdade.
E o pescoço… pensei no pescoço. Longo, elegante, símbolo de um pensamento feminino que se eleva. Mais tarde, encontrei em Modigliani esse traço que me encantou de imediato, e sua influência se fundiu às minhas reflexões. Assim nasceu a coleção Marias Concebidas, que foi exposta em uma galeria de arte em Mariana, Minas Gerais. Uma amiga, professora, contou que levou seus alunos para a exposição e que os olhos, os pescoços alongados e as cores geraram diálogos instigantes entre eles.
Falei a Ana Carolina sobre o fundo preto do quadro. O preto carrega uma intimidade com minha pele, uma intensidade que me remete à presença das pessoas negras e do continente africano – cenário da própria história cristã, ponto de partida de tantas narrativas. A figura feminina no quadro, com suas formas e curvas, talvez seja bonita, mas não de maneira óbvia. Há beleza ali, sim, mas é uma beleza que exige um olhar demorado, um esforço para perceber. A pele é adornada com texturas e cores que evocam o barroco de Ouro Preto e Mariana, lugares que habitaram minha vida por tanto tempo e do filho não nascido e do amor esvanecido nas praias do mar de Minas. Pensar nessas cidades me leva à arte do barroco, à presença dos negros escravizados que transformaram sua humanidade em algo sublime, expressa na arte religiosa das cidades históricas.
Esse quadro, no entanto, não participou da exposição da coleção Marias Concebidas. Não foi concluído a tempo. Ele percorreu comigo, dialogando com minhas dúvidas, dores e sentimentalidades. Quando finalmente lhe dei vida, ele já carregava uma história própria, não escrita, mas sentida.
E agora, ele está com Ana Carolina, dialogando com os olhos dela. Talvez esteja contando coisas que nem eu mesmo consigo mais traduzir.
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