Numa noite discreta de 1937, em um bar oculto pelas sombras de Paris, Pablo Picasso e Wifredo Lam sentavam-se à mesa com copos de absinto e blocos de papel, imersos numa troca febril de ideias. O tilintar dos copos e as conversas abafadas ao redor pareciam não importar; o foco deles estava em outro plano, onde a arte e o mundo se desintegravam e se refaziam. Picasso, com gestos rápidos e furiosos, esboçava figuras que já carregavam a semente de Guernica. Ele sentia o caos iminente, o presságio da guerra, e o seu lápis desenhava corpos angulares e distorcidos, enquanto conversava sobre a destruição que ele via surgir no futuro da Europa.
Sentada perto deles, Reina, uma mulher cubana de olhos penetrantes, observava os dois artistas com uma atenção quase hipnótica. Embora silenciosa, sua presença ressoava profundamente na atmosfera do bar. Picasso e Lam olhavam para ela de tempos em tempos, como se sua presença silenciosa fosse uma espécie de catalisador para suas criações. Reina sabia que era mais do que uma simples observadora; ela era o reflexo do que aqueles homens buscavam em suas artes.
Para Picasso, Reina não era apenas um reflexo da fragmentação humana diante do horror iminente, mas também uma janela para o futuro da arte. Ele via em seus traços e na sua presença silenciosa algo mais profundo, algo que ia além da simples representação do sofrimento. Ela era, para ele, um novo ponto de partida, um eco distante do que Modigliani lhe havia revelado anos antes, quando juntos admiraram a arte africana em um pequeno relicário em Paris.
Naquele encontro, Modigliani havia mostrado a Picasso as máscaras e esculturas africanas que, com suas formas estilizadas e angulosas, abriram um novo horizonte em sua mente criativa. Agora, sentado naquele bar com Lam, Picasso reconhecia em Reina uma continuidade daquele momento de revelação artística. Seus traços angulares, suas formas fluidas, pareciam carregar em si o espírito daquelas peças de arte que, mesmo estáticas, eram vivas e pulsantes. Naquele instante, Picasso semeou as primeiras ideias, de onde brotou sua obra intitulada "Guernica".
Para Picasso, Reina personificava a mesma energia primitiva e enigmática que havia visto naquelas esculturas – uma fusão do passado ancestral com um futuro imprevisível, algo que ele sentia ser essencial para o caminho que a arte estava tomando.
Assim como a arte africana revolucionou sua visão estética, Reina parecia condensar em si um novo paradigma, uma síntese entre o caos e a ordem, entre a tradição e a vanguarda. Picasso, com sua obsessão em quebrar formas e reconfigurar a realidade, encontrava nela a mesma força transformadora, o mesmo magnetismo que o havia empurrado a questionar os limites da representação. Agora, com os ecos do passado reverberando em suas memórias, ele via em Reina não apenas uma mulher cubana silenciosa, mas o futuro da arte, uma personificação das correntes invisíveis que mudariam o mundo.
Lam, ao lado de Picasso, também sentia essa força, mas ele a via de outra maneira, mais conectada com o espiritual e com as tradições ancestrais de Cuba e da África. Picasso, no entanto, olhava para Reina e via o futuro, assim como havia olhado para aquelas esculturas no relicário com Modigliani – com olhos que pressentiam uma revolução.
Lam, com o poema "Fata Morgana" de Breton em mãos, via Reina como essa figura etérea, uma miragem que aparece no horizonte, tangível e ao mesmo tempo inatingível. Ela representava a fusão do real com o imaginário, do visível com o espiritual. Em seus esboços, ela se tornava um ser híbrido, entre o humano e o divino, como as figuras mitológicas que ele logo imortalizaria em suas pinturas.
A noite avançava, os copos esvaziavam-se, e os esboços se amontoavam nas mesas. Reina, ciente de que havia sido capturada nos traços de dois dos maiores artistas do século, levantou-se com uma leveza quase irreal. Deu uma última olhada para os homens concentrados em seus desenhos, e desapareceu na noite, como uma miragem que se dissipa ao nascer do sol.
Anos depois daquela noite em Paris, Wifredo Lam retornou à Cuba, onde mergulhou em uma fase ainda mais profunda de sua carreira, fundindo as tradições cubanas com o surrealismo europeu. Suas telas se encheram de figuras que representavam as culturas africanas de sua terra natal, e ele nunca se esqueceu daquela noite em que Reina foi a musa silenciosa.
Quanto a Picasso, movido pela lembrança de Reina e pela inquietação de seu mistério, decidiu visitar Cuba. Em Havana, ele procurava algo que pudesse dar continuidade à experiência que viveu ao lado de Lam e daquela mulher enigmática. A ilha, com suas cores vibrantes e suas formas dinâmicas, parecia oferecer pistas para entender a beleza e o mistério inacabado daquele encontro. Picasso vagou pelas ruas de Havana, acreditando que, de alguma forma, encontraria em Cuba os fragmentos que Reina deixou em sua mente e em seus esboços, fragmentos que, como a Fata Morgana, jamais poderiam ser completamente capturados.
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