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Lucy e o La Coupole

  • Foto do escritor: Adenilson Barcelos de Miranda
    Adenilson Barcelos de Miranda
  • há 3 dias
  • 5 min de leitura
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Vamos, primeiro, acompanhar a formação das ondas concêntricas na superfície de um lago: uma árvore na margem do lago deixa a folha cair e tocar a superfície do lado, o movimento se expande até alcançar a margem, onde a árvore sente as ondas concêntricas se propagando na terra. É ali, na margem, que nos colocamos para observar.

De vez em quando, ela surgia no La Coupole, me disseram. Sua aparição transformava o ambiente em um acontecimento coletivo. A presença dela era como a folha que toca o espelho d’água: gerava uma onda que atravessava o lago inteiro até chegar aos limites, e, ao tocar a margem, punha-se em movimento a partir dela. Quero dizer que havia uma alegria que se irradiava em ondas, como se a presença dela devolvesse a cada pessoa ali o direito de existir.

As conversas mastigavam palavras apressadas e se desviavam, inevitavelmente, na direção dela. Copos eram erguidos, e logo alguém se adiantava para lhe oferecer uma cadeira perto da janela, onde a luz atravessava as garrafas e se desdobrava em tons de âmbar. O assunto, quase sempre, era a arte. Parecia que todos aguardavam aquele instante em que ela, com ironia e graça, convocava Modigliani para o centro da mesa, como quem chama um velho cúmplice, e assim despertava, ou provocava, os fantasmas de Montparnasse. 

Falava-se de tudo aquilo que só a “arte” poderia nomear, embora ninguém ousasse dizer a palavra “arte”. Ela circulava entre nós como um perfume, insinuando-se nas entrelinhas, no brilho de um olhar, no gesto de quem ajeitava a xícara antes de falar. Comentávamos quadros, cores, tintas, lembranças de ateliês e de ruas antigas, mas sempre sem tocar no termo exato, como se pronunciá-lo quebrasse um encanto frágil. E, no entanto, era justamente essa ausência que a tornava mais presente: a arte respirava ali, silenciosa e inteira, preenchendo os espaços entre as frases e sustentando tudo o que não sabíamos como dizer.

Pablo Picasso, Cabeça de uma mulher (1917) e máscara do povo Dan, África (data desconhecida).
Pablo Picasso, Cabeça de uma mulher (1917) e máscara do povo Dan, África (data desconhecida).

Falava-se então da expressão africana nos quadros de Modigliani, das máscaras e das linhas alongadas que pareciam vir do coração de outra civilização, e de como essas formas haviam chamado a atenção de Picasso, que, a partir delas, passou a experimentar em suas telas aquilo que o mundo europeu chamaria de “revolução estética”. Ela se exaltava ao dizer: “O que ele fez foi tomar emprestado um mundo inteiro e chamar de gênio o gesto de roubar.” Uns murmurando em defesa do espanhol, outros fascinados com a veemência dela, que falava da África com reverência e com o tom de quem pronuncia uma herança ferida. Sim, houve muita discussão e, mais precisamente, uma intensa rivalidade entre Amedeo Modigliani e Pablo Picasso.


Pintura de amadeo Modigliani (1917) e máscara usada por dançarinos em Gabão, África, século XIX - XX.
Pintura de amadeo Modigliani (1917) e máscara usada por dançarinos em Gabão, África, século XIX - XX.

Embora ambos fossem figuras centrais na efervescente produção cultural de Paris, entre Montmartre e Montparnasse, no início do século XX, eles nunca foram amigos. Mas, jamais foram inimigos. É outra coisa para não ser nomeada. Mas ela disse que ali havia uma relação complexa de amizade. O que os aproximava era justamente o abismo: a competição silenciosa, a diferença irreconciliável, o olhar oblíquo e desconfiado que cada um lançava sobre o outro, como se disputassem não apenas prestígio, mas o próprio direito de existir uma nova sensibilidade no mundo.

Picasso era o arquiteto da desconstrução, o pintor que via o mundo como um conjunto de planos a serem desmontados e recompostos pela mente. Modigliani, por sua vez, recusava esse racionalismo geométrico. Via no espanhol um exercício frio, um deserto de emoção. Ele buscava, ao contrário, a carne, o rosto, o olhar, a alma. Sua arte era febril, feita de curvas humanas e silêncios espirituais, não de ângulos. Essa diferença de visão era também uma diferença de vida. Picasso já colhia fama, crítica, dinheiro. Era o artista que se tornava uma instituição. Modigliani, ao contrário, vivia a precariedade e o mito do artista amaldiçoado, pobre, doente, bêbado, mas orgulhoso, habitante das madrugadas de Paris e das esquinas onde a arte e o desespero se tocavam. Contam que Modigliani, inflamado pelo álcool e pela convicção, criticava Picasso em voz alta nos cafés, chamando-o de oportunista, alguém que transformava em vanguarda o que o outro vivia como verdade espiritual. Para Modigliani, o corpo que ele pintava não era forma, era destino.

A discussão que ela evocava no bar não era apenas sobre estilos ou escolas. Era sobre apropriação, memória e apagamento. Sobre o modo como Picasso reescreveu a presença africana na arte europeia sem jamais dizer o nome da África, enquanto Modigliani, em sua pobreza luminosa, parecia abraçar as formas e os rostos com uma reverência silenciosa. Era sobre o gesto de roubar e o gesto de amar.

E assim, o bar inteiro se tornava uma espécie de arena, onde o fantasma de Modigliani, magro e febril, desafiava o trono de Picasso, e ela, essa mulher que falava com os mortos e com os vivos, fazia da discussão uma forma sublime.

Quando alguém finalmente lhe perguntou o que fazia, talvez esperando ouvir que era pintora, curadora, restauradora ou alguma dessas ocupações que parecem nascer naturalmente em cafés parisienses, ela sorriu com uma delicadeza quase travessa. Respeitou, e disse, simplesmente: “Trabalho com números”. Por um instante, o bar inteiro pareceu recuar um passo. Houve um silêncio leve, não constrangedor, mas de suspensão: como se o chão tivesse mudado discretamente de textura. Era como descobrir que a folha que desencadeia as ondas no lago viesse de um uma árvore desconhecida, cujas raízes atravessam lugares que ninguém imaginava.

Os olhares se cruzaram, perplexos. Alguém ergueu as sobrancelhas. Outro sorveu o drink com mais força do que devia. O garçom parou no meio do corredor, segurando uma bandeja de taças vazias. Era como se todos tentassem reconciliar a imagem daquela mulher, que falava de máscaras africanas como quem nomeia constelações, que invocava Modigliani com uma intimidade de quem o conhecia na palavra estatística.


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Ela tinha o dom de desorganizar suavemente a ordem das certezas. Os presentes, ainda desconcertados, riram. Alguns por nervosismo, outros por puro encanto. E ela, inclinando-se para a janela, deixou que a luz devolvesse ao seu rosto aquela mesma vibração que animava o bar inteiro sempre que chegava: uma espécie de claridade interior, como a onda que parte do centro do lago insistisse continuar ao alcançar a margem.

Foi então que alguém perguntou,  meio curioso, meio provocador, como alguém que trabalhava com estatística tinha aprendido a falar de Modigliani e Picasso daquele jeito. E ela respondeu, com a voz baixa, mas firme o suficiente para redesenhar o espaço ao redor: “Números também guardam o que é invisível. Só não gostam de ser interpretados com preguiça”. E sorriu, como quem sabe que lançou uma pedra no lago.


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