A manhã não cabe na vitrine
- Adenilson Barcelos de Miranda
- há 1 dia
- 2 min de leitura

Glaucia abre a porta e, ao fechá-la, certifica-se de que ficou trancada. Segue pelo corredor e desce a escada. O degrau diferente ainda está lá, tornando a velha escada manca para quem sobe, como se os passos tropeçassem nos ponteiros de um relógio impreciso.
Ao chegar à portaria, avança num instante para o dia que brilha. Segue pela calçada e, logo adiante, avista um corpo estendido no chão. Um homem deitado, que ergue a perna direita e a apoia sobre o joelho da esquerda, como se estivesse sentado num escritório invisível. O braço direito repousa sobre o rosto, protegendo os olhos da luz. Ele já faz parte da paisagem do bairro, Glaucia o reconheceu.
À sua frente, Glaucia vê a vitrine da loja. Dentro dela, a manequim veste um vestido banhado por uma luz que parece embelezar tudo o que toca; tudo, exceto o homem deitado junto ao vidro submerso na sua condição. A presença dele é forte, um contraste que não se dissolve.
De repente, um rosto lindo de mulher surge refletido na vitrine, sobrepondo-se à imagem da manequim e ao corpo estendido. As imagens se misturam: o corpo imóvel no chão, a mulher bonita que se aproximou para visitar o vestido, o reflexo fabricado da cidade e sua própria imagem. O som da cidade engole a cena, digerindo a presença de todos.
Glaucia observa o rosto bonito da mulher no reflexo da vitrine. A mulher bonita encara a manequim como quem se observa num espelho improvisado, formado na superfície calma de um lago. Glaucia busca seus óculos no bolso da jaqueta; seus olhos brilham no próprio olhar. Então, a moça bonita desvia o rosto e olha para Glaucia com um sorriso feito para a capa de uma revista enquanto o seu olhar reprova, silencioso, a presença do homem na calçada.
Contudo, Glaucia não consegue sustentar um sorriso de resposta. Os músculos do rosto cedem, como se sentissem o peso insuportável do ar que se adensa ali. De repente, a beleza da vitrine se quebra e, com ela, a mulher ao seu lado também se desfaz. Resta o homem, o vidro, e a manhã que segue, indiferente, seu curso.

Glaucia se lembra do degrau da escada velha, do tempo que aquele degrau quebrou no ritmo dos passos que sobem e descem. Terá sido proposital. No dia seguinte: Glaucia abre a porta e, ao fechá-la, certifica-se de que ficou trancada. Segue pelo corredor e desce a escada. O degrau diferente ainda está lá, tornando a velha escada manca para quem sobe, como se os passos tropeçassem nos ponteiros de um relógio impreciso. Ela então senta sobre o degrau, busca os óculos, pega o celular e busca um contato, liga, espera. Uma voz acolhe e Glaucia solta a frase: sou linda, não sou uma mulher de vitrine. Após alguns instantes, chega à portaria, avança num instante para o dia que brilha. Segue pela calçada e, logo adiante, não avista o corpo estendido no chão. O lugar está vazio invocando a presença daquele homem. Na vitrine, a manequim está nua esperando um vestido novo.
Glaucia segue. A cidade continua. Mas, desde então, cada passo carrega a certeza de que nem toda beleza foi feita para vitrines, e nem todo obstáculo existe para derrubar alguém. Alguns apenas ensinam a andar de outro modo.





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